20/04/22 | São Paulo
Reportagem publicada pela National Geographic
Fonte de luz e calor, a combustão contínua do Sol, ativa há bilhões de anos, fez da estrela a fonte primária de energia para a humanidade. Agora, à medida que o impacto da queima de combustíveis fósseis no aquecimento global fica mais evidente, a energia solar volta ao centro das atenções.
“O Sol definitivamente nasce para todos”, diz Aline Kirsten, vice-presidente da Associação Brasileira de Energia Solar, em entrevista à National Geographic. Kirsten, engenheira elétrica e doutoranda em energia solar fotovoltaica pela Universidade Federal de Santa Catarina, se dedica a estudar o assunto desde 2017 e é co-fundadora da Rede Brasileira de Mulheres na Energia Solar, que atua pela igualdade de gênero no setor. Ela também integra a diretoria da Sociedade Internacional de Energia Solar. “Ela vai ser parte da nossa vida e ocupará, cada vez mais, uma porcentagem da matriz energética de todos os países. Creio que a energia solar tem vários papéis, não só nessa questão da transição energética. Seus benefícios atravessam a geopolítica e chegam ao desenvolvimento social do mundo.”
Por que investir em energia solar?
Por conta da atual dependência humana em relação aos em combustíveis fósseis, o planeta já aqueceu mais de 1ºC em comparação com períodos pré-industriais. A constatação é do Sexto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), publicado em agosto de 2021, o qual coloca a queima desses combustíveis como um dos principais vilões do aquecimento global. Por isso, o investimento em fontes de energia limpas é uma das principais ações recomendadas pela Organização das Nações Unidas (ONU) para o desenvolvimento sustentável.
Além da emergência climática, a atual crise energética devido aos altos preços dos combustíveis fósseis influenciados principalmente pela crise sanitária do covid-19 e por conflitos internacionais também coloca o mundo em estado de urgência para “limpar” a matriz energética. A Agência Internacional de Energia Renovável (Irena, na sigla em inglês) aponta que as energias solar e eólica devem ser prioridades do setor energético para os próximos oito anos. Tudo isso a fim de preservar a meta limite do aquecimento global em até no máximo 1,5°C, conforme estabeleceu o Acordo de Paris em 2015.
Em relação à energia solar, a agência diz que essa fonte de energia renovável é um dos meios para o mundo não ultrapassar o cenário limite de variação na temperatura. Isso porque, ainda que nenhuma fonte de energia, mesmo que renovável, esteja inteiramente livre de impactos ambientais, a energia solar apresenta um dos menores entre todas disponíveis.
Uma pesquisa publicada em 2017 na Nature Energy, realizou uma medição estimada da quantidade de gases de efeito estufa que seriam emitidos durante o ciclo de vida completo de uma série de fontes de eletricidade até 2050. Segundo o trabalho, cada kWh (quilowatt/hora) de eletricidade gerada pela solar teria uma pegada de carbono equivalente a 6 gramas de CO2 (gCO2e/kWh). A título de comparação, o carvão emite, em média, 109 gCO2e/kWh, o gás natural 78 gCO2e/kWh e a hidro 97 gCO2e/kWh. Entre as fontes renováveis, a bioenergia teria uma pegada de 98 gCO2e/kWh, enquanto a eólica e a nuclear 4 gCO2e/kWh.
Além do fator ambiental, a energia solar também é uma das mais baratas, tanto na produção quanto na instalação. Não à toa, ela é apontada como a fonte renovável com maior potencial de crescimento para os próximos anos. Só em 2021, a energia solar gerou mais de 994 TWh (terawatts/hora) no mundo, segundo os dados mais recentes da Associação de Energia Internacional (IEA, na sigla em inglês). A energia solar também continua sendo a terceira maior tecnologia de eletricidade renovável, atrás da hidrelétrica e da eólica onshore (infraestruturas de geração de energia em terra), depois de ultrapassar os biocombustíveis em 2019.
O próprio relatório de 2021 de energia renovável da associação ressalta que a capacidade de geração de eletricidade renovável deve aumentar em uma média de 305 GW (gigawatts) de potência instalada por ano até 2026, sendo que a energia solar fotovoltaica, sozinha, deve ser a responsável por 60% desse crescimento. Em teoria, considerando que 1 GW de energia solar é capaz de abastecer cerca de 500 mil casas com consumo médio de 180 a 200 kWh, a eletricidade gerada pelo Sol, caso as estimativas da IEA se confirmem, teria potencial para suprir a demanda de mais de 400 milhões de residências.
Todo esse potencial, relata Carlos Cabrera Rivas, professor de mercado de energia e regulações da Universidade de Santiago, no Chile, e presidente da Associação Chilena de Energia Solar (Aquesol), é resultado de avanços tecnológicos dos últimos 10 anos. “As tecnologias para gerar energia a partir do Sol evoluíram muito na última década”, diz Rivas. “Isso a deixou mais eficiente, menos custosa e mais amigável ao meio ambiente.”
Ainda segundo Rivas, esse boom no setor de energia solar também se deu pela grande evolução dos sistemas solares fotovoltaicos, um dos dois principais modelos de geração de energia pela luz do Sol. O outro modelo, chamado de heliotérmico, é basicamente uma termelétrica movida a luz solar. A radiação solar é usada para esquentar água e gerar vapor que, por sua vez, gira uma turbina para gerar energia elétrica. “Mas a escala dessa tecnologia ainda é muito menor, pouco acessível, e os seus preços também são bem mais elevados”, explicou Rivas.
Como funciona a energia solar fotovoltaica
A energia solar fotovoltaica é a conversão direta da radiação do Sol em eletricidade por meio do efeito fotovoltaico, um método descoberto em 1839 pelo físico francês Alexandre Edmond Becquerel. Entretanto, a tecnologia de energia solar próxima ao que conhecemos hoje é relativamente nova. Em 1954, a primeira célula de energia solar foi formalmente apresentada durante a reunião anual da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, em Washington, e a primeira utilização oficial da energia fotovoltaica foi feita quatro anos depois do anúncio, em 1958, por conta do lançamento do satélite Vanguard I, que utilizava um mini painel solar para alimentar um rádio.
Hoje em dia, para gerar energia com a luz solar por esse meio é necessário a instalação de módulos – ou painéis – fotovoltaicos. Compostos por células solares, feitas de materiais semicondutores como o silício, é deles a função de transformar a luz do Sol em energia.
Mas como isso acontece? O material semicondutor presente nessas células contém elétrons livres que reagem à radiação presente na luz solar. Ao serem iluminados, esses elétrons se agitam – em outras palavras, eles “ficam “carregados” –, e são direcionados para um dos lados do semicondutor por conta do campo magnético permanente do material.
“Os elétrons, por natureza, têm carga negativa. Então, o lado do semicondutor que ficar com mais elétrons ficará carregado negativamente, enquanto o lado oposto terá carga positiva”, explica Rodrigo Sauaia, mestre em energia renovável pela Universidade de Loughborough, no Reino Unido, doutor em energia solar fotovoltaica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, e presidente-executivo da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar), entidade nacional sem fins lucrativos que reúne empresas e organizações do setor solar fotovoltaico no Brasil. A associação realiza, entre outras atividades, estudos técnicos e levantamentos mensais sobre a produção de energia solar no país.
Quando as duas faces desse sistema são conectadas, os elétrons fluem do lado negativo para o lado positivo. “É nesse processo, do movimento dos elétrons, que a gente extrai a energia que chamamos de energia elétrica”, completa Sauaia.
Uma vez gerada a eletricidade, é preciso direcioná-la para uso. Mas há outra etapa antes que a energia solar abasteça uma lâmpada ou geladeira. Os painéis solares produzem energia elétrica em corrente contínua, mas os aparelhos domésticos exigem corrente alternada – a diferença é o sentido para o qual os elétrons se movem. Na contínua, eles vão para um lado único, e, na alternada, eles variam de direção constantemente. Para isso, existe o inversor solar fotovoltaico, que converte essa energia elétrica de corrente contínua para corrente alternada e, em seguida, distribui para toda a rede elétrica.
Para os especialistas, um dos principais motivos da energia solar ter essa projeção de crescimento é o preço. Tanto para o consumidor final quanto para investidores, a energia solar fotovoltaica é uma das mais baratas, mesmo quando comparada a outras fontes renováveis.
Segundo o relatório de 2021 da IEA, a energia solar fotovoltaica de escala utilitária – ou seja, quando distribuidoras instalam módulos em telhados residenciais, de edifícios ou em propriedades privadas – é a opção menos dispendiosa para adicionar capacidade elétrica, especialmente em meio ao aumento dos preços do gás natural e do carvão. Em paralelo, o documento do Irena indica que o custo global de projetos fotovoltaicos de escala utilitária caiu 85% entre 2010 e 2020.
“Uma das explicações dessa diminuição é que a tecnologia fotovoltaica está cada vez mais acessível e eficiente”, diz Carlos Rivas, presidente da Acesol. “A fabricação de módulos fotovoltaicos também viu um crescimento enorme nos últimos anos, devido a novas fábricas na China, hoje líder do setor.”
Quanto custa colocar energia solar em casa
O fato de ser uma energia mais barata para produzir também significa que a energia solar é mais barata para consumir. Sauaia afirma que o consumidor que opta por um módulo fotovoltaico em casa já vê uma diminuição de até 90% na conta de luz logo no primeiro mês depois da instalação.
“Hoje, gerar a própria energia no telhado da sua casa, do seu pequeno negócio ou da sua propriedade rural, já é mais barato do que comprar essa energia de terceiro”, diz Sauaua. “O investimento compensa.”
Mas o investimento inicial de um sistema fotovoltaico ainda não é tão acessível, alerta. No Brasil, por exemplo, a instalação de um sistema com capacidade para abastecer uma família de quatro pessoas pode sair entre 12 e 15 mil reais.
“Por isso, é importante que quem queira instalar energia solar em casa faça um estudo de consumo”, diz Sauaia. Ele afirma que a transição para a fotovoltaica costuma valer a pena considerando que os módulos têm vida útil de 25 anos e, com a economia na conta de luz, o investimento se paga em três a cinco anos.
Menos gases de efeito estufa
Como fonte renovável, a principal vantagem da energia solar fotovoltaica é a baixa emissão de gases de efeito estufa. Não é possível dizer que a fonte tem zero emissões, pois é preciso considerar a energia consumida para a produção dos painéis e demais equipamentos fotovoltaicos. Mas, uma vez funcionando, um sistema fotovoltaico consegue “pagar” sua pegada de carbono em pouco tempo.
Um estudo de pesquisadores do Laboratório Nacional de Brookhaven, da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, e da Universidade Utrecht, na Holanda, concluiu que um pedaço de um metro quadrado de um painel solar feito com silício cristalino consumiu 250 kWh de eletricidade para produzir. Esse mesmo metro quadrado, nas condições avaliadas, produziu 100 kWh por ano. Isso significa que o período de retorno para o painel fotovoltaico de silício cristalino testado, ou seja, quanto tempo o módulo zeraria seu impacto ambiental, foi de aproximadamente 2,5 anos.
Um levantamento feito pela Associação Brasileira das Empresas de Serviços de Conservação de Energia em 2016 indicou que uma residência equipada com um sistema fotovoltaico capaz de gerar 180 kWh ao mês pode evitar que cerca de 1,3 toneladas de CO2 seja lançada na atmosfera em um ano. Em 25 anos, tempo de garantia dos módulos fotovoltaicos, esse volume pode alcançar cerca de 32 toneladas.
Sauaia afirma que, em 2021, a energia solar ajudou o Brasil a reduzir suas emissões de gases de efeito estufa na geração de energia elétrica em 19,6 milhões de toneladas.
Mas nem tudo é tão simples quando se trata de energia solar. Um dos problemas é que muitos dos insumos utilizados para a fabricação de módulos fotovoltaicos são minerais não renováveis, como o silício, usado na fabricação do silício metálico, componente essencial para a conversão de luz em energia elétrica.
Outro problema é o lixo e a poluição gerados pelo descarte dos painéis solares. Quando descartados de forma não adequada, os módulos, por conterem resíduos tóxicos como qualquer outro equipamento eletrônico, podem contaminar o solo e lençóis freáticos e até causar danos à saúde de animais, plantas e humanos. “Um grande problema para os próximos anos vai ser a reciclagem desses módulos, principalmente com o volume de produção atual”, reforça Kirsten. “É uma questão que deve tomar a atenção do setor, e logo.”
Fonte de energia democrática
Para Kirsten, além de ser mais atrativa em relação às baixas emissões, a energia solar também serve como um meio para o desenvolvimento social e inclusão de grupos minoritários nas tomadas de decisões, principalmente no caso das mulheres.
De acordo com ela, há uma preocupação para que a transição para uma matriz elétrica mais limpa e sustentável seja também uma porta de entrada para mais diversidade no setor energético.
“O mercado emergente da energia solar é uma oportunidade para que mulheres também participem dessa transição, façam parte dessas decisões e consigam ter uma voz dentro de um setor que, até agora, é todo carregado por homens, principalmente na América do Sul”, afirmou Kirsten.
Segundo Rivas, presidente da Acesol, há outro ponto desse tipo de energia que a coloca como ferramenta de inclusão: o fato de haver luz solar em todo o planeta. “É um tipo de energia que está disponível para todos, independente da posição geográfica. Claro que existem zonas mais privilegiadas em relação à radiação do que outras, mas há Sol em todo o lugar.”
Além disso, por ser possível a instalação de módulos fotovoltaicos de diferentes tamanhos e potências, a energia solar também é usada para levar energia elétrica para regiões em que a rede convencional não alcança. Isso é feito através de sistemas fotovoltaicos offgrid, ou isolados – que não precisam ser ligados à rede elétrica.
Na Bolívia, por exemplo, essa tecnologia vem sendo utilizada como solução para levar energia elétrica a áreas rurais isoladas. Segundo estimativas do governo boliviano, 13% da população rural ainda não tinha acesso a serviços de eletricidade em 2020. Isso equivaleria a mais de 400 mil pessoas sem energia elétrica.
Comunidades ribeirinhas e indígenas que vivem em pontos de difícil acesso na Amazônia ou nos Andes peruanos, que normalmente dependem de geradores a diesel para ter eletricidade, também têm sido alvos de iniciativas de sistemas fotovoltaicos isolados.
No Brasil, no início deste mês, um sistema de energia fotovoltaica foi instalado em uma Unidade Básica de Saúde ribeirinha no município de Santarém, oeste do Pará, para garantir a conservação adequada de vacinas.
O caso, uma parceria entre as autoridades municipais e a ONG Projeto Saúde e Alegria, pode servir de modelo para outras comunidades afastadas por toda a América Latina.
Energia solar: uma tendência latino-americana
Para Sauaia, a América Latina tem um lugar reservado entre os gigantes da energia solar. Atualmente, o setor é liderado pela China, que agrega mais de 225 GW de potência instalada, seguida dos Estados Unidos (76 GW), União Européia (72 GW) e Índia (38 GW).
“A energia solar está se mostrando uma opção segura, limpa, confiável e barata no mundo todo. Mais especificamente na América Latina, que tem uma abundância muito grande da fonte”, disse Kirsten.
Hoje, a região tem uma capacidade instalada de energia solar fotovoltaica de 23,5 GW. Até 2026, a IEA prevê que a região alcance o quinto lugar entre as áreas analisadas, superando os 54 GW. Ainda ficaria longe da quarta colocada, a Índia, cuja previsão para 2026 é de mais de 130 GW de potência instalada, mas significaria o dobro do crescimento dos últimos cinco anos.
Entre os maiores produtores de energia solar na América Latina, segundo das associações brasileira e chilena, está o Brasil, responsável por 40% da potência instalada, seguido do México, com 28%, Chile, com 16%, Argentina, com 4%, e Honduras, com 3%.
Esse cenário, diz Rivas, é resultado de mais de 15 anos de avanços no setor e da recente massificação e barateamento da tecnologia. “A energia solar cresceu de forma exponencial na última década, acredito que principalmente pela diminuição dos custos ocasionados pela entrada da China e da Índia como produtores de módulos”, diz ele.
Para as próximas décadas, Sauaia acredita que a solar fotovoltaica fique cada vez mais relevante na região, tornando-se protagonista na matriz elétrica dos países, principalmente no Brasil. “Para o Brasil, por exemplo, as projeções dos analistas de mercado para 2040, 2050, apontam que a fonte solar deve se tornar a número um da matriz elétrica brasileira, ultrapassando inclusive as hidrelétricas em potência instalada”, diz Sauaia.
Um dos marcos mais recentes para a solar fotovoltaica no país é que, em março deste ano, a produção nacional atingiu a marca histórica de 14 GW de capacidade instalada, a mesma potência da hidrelétrica binacional de Itaipu.
Segundo estudo recente da consultoria Bloomberg New Energy Finance, até 2050 cerca de 32% da energia brasileira viria do Sol, enquanto a hidrelétrica, principal fonte de energia hoje – mais de 60% da matriz elétrica nacional – cairia para 30%. “Isso acontecerá não porque as hidrelétricas vão diminuir, mas porque a energia solar crescerá mais rápido e mais intensamente nesse período do que outras fontes”, relata Sauaia.
O fato é que o setor de energia solar está em pleno desenvolvimento e tem alto potencial de transformar a maneira como a América Latina produz e consome eletricidade, focando na descarbonização das matrizes energéticas. Para Carlos Rivas, da Acesol, “a luz solar tem capacidade de ser o carro-chefe nessa mudança. Trata-se de uma tecnologia que está cada vez mais popular e acredito que o futuro para Brasil, Chile e toda América Latina será solar.”