29/04/21 | São Paulo
Reportagem publicada no Biomassa Bioenergia
De acordo com Valor, a transição para uma economia de baixo carbono já está em curso, com mais de 170 países assumindo metas para energias renováveis. Destes, pelo menos 30 já se comprometeram a se tornar neutros em carbono até 2050. O fio condutor dessa transformação é o Acordo de Paris, compromisso internacional que busca evitar que a temperatura global se eleve para além de 2ºC em comparação aos níveis pré-industriais. De acordo com relatório de março de 2021 da Agência Internacional para as Energias Renováveis (Irena, na sigla em inglês), os próximos nove anos serão decisivos para se alcançarem a velocidade e a escala necessárias para uma redução de emissões de gases de efeito estufa de 45%, o recomendado para frear o aumento das temperaturas. Porém, no período entre 2014 e 2019, as emissões globais subiram em média 1,3% por ano e só caíram 7% em 2020 por causa da pandemia de covid-19.
Com mais de 80% de participação de energias renováveis na matriz elétrica e uso amplo de biocombustíveis como o etanol nos transportes – carros flex representam uma fatia de 70% da frota de veículos leves –, o Brasil é visto como um país com as condições ideais para atravessar a jornada rumo à descarbonização da economia.
Para especialistas, essa transição já acontece no país, mas o risco é de uma acomodação nos patamares atuais. Para acompanhar o ritmo do mundo, será preciso estar atento a novas possibilidades energéticas, como o hidrogênio verde, além de investimentos em sistemas que possibilitem armazenar a energia gerada por fontes intermitentes, como a solar fotovoltaica e a eólica.
“A transição energética se dará com fontes renováveis e armazenamento. Nos Estados Unidos e na Europa isso vem se tornando realidade, mas o Brasil ainda não tem legislação sobre armazenamento e a tributação sobre baterias é alta, o que cria um entrave para a tecnologia”, diz Julião Coelho, mestre em direito de energia e tecnologia limpa pela Universidade da Califórnia, em Berkeley.
Segundo ele, para fazer frente à mudança de cenário, o país precisa atualizar suas políticas de incentivo na área de energia – o último programa de incentivo às fontes renováveis em nível federal foi o Proinfa, do início dos anos 2000, que deu um impulso para que fontes como a eólica, solar e biomassa avançassem na matriz elétrica.
Regulações como a Resolução 482/2012, da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), e políticas estaduais e municipais ajudaram a fomentar a expansão da energia fotovoltaica no país, que alcançou 5,1 GW em abril. “Não identifico uma política nacional voltada para a transição energética que o mundo vive hoje”, diz.
Ao mesmo tempo, empresas brasileiras do setor energético ganham competitividade com a aposta em renováveis. A Raízen, empresa integrada que atua nos segmentos de produção de açúcar e etanol, distribuição de combustíveis e geração de energia se tornou o maior produtor mundial de etanol de cana-de-açúcar, com uma produção anual em torno de 2,5 bilhões de litros e, globalmente, comercializa 14 bilhões de litros de biocombustíveis. Com a queima da biomassa da cana, a empresa produz 1 GW de energia em 23 usinas, o suficiente para abastecer 100% do consumo próprio e ainda exportar a energia excedente para o grid em 13 dessas plantas de bioenergia.
No ano passado, a empresa deu um passo além da cogeração e inaugurou, em outubro, a primeira planta para produção de biogás a partir da conversão de dois subprodutos do processamento da cana, a vinhaça e a torta de filtro. O empreendimento tem capacidade instalada para gerar 21 MW de energia elétrica e, além disso, o biogás pode ser purificado e convertido em biometano, que pode substituir o gás natural e o diesel na frota pesada.
“Este projeto representa uma revolução no tratamento dos resíduos agroindustriais por meio do uso mais eficiente destes para a produção de novos produtos”, diz Ricardo Mussa, presidente da Raízen. Segundo o executivo, outra peça fundamental na transição energética é o etanol de segunda geração, que utiliza o bagaço de cana como matéria-prima e contribui diretamente no enfrentamento das mudanças climáticas, pois sua pegada de carbono é ainda 30% inferior ao etanol convencional, por utilizar resíduos para sua produção.
O biogás, além de ter grande potencial para substituir fósseis na matriz energética, também pode ser utilizado para a produção de hidrogênio verde, tecnologia que começa a receber grande atenção de países da Europa. “Com a grande disponibilidade de resíduos agrícolas no Brasil, o país tem o potencial de se tornar um dos maiores produtores de biogás e etanol celulósico do mundo e exportar essa experiência, produtos e tecnologias para o resto do mundo, apoiando os demais países a descarbonizar suas matrizes energéticas”, diz Mussa.
Companhias que atuam no ramo de combustíveis fósseis, especialmente na exploração de petróleo e gás, afirmam que estão se preparando para a transição energética, cada uma a seu modo. A Petrobras já foi apontada como uma das petrolíferas menos preparadas para a transição pela organização Carbon Tracker Initiative, por ter 70% das opções de negócios sob risco de se tornarem pouco competitivas com a queda na demanda por fósseis.
Em nota ao Valor, a empresa afirma que o plano estratégico 2021-2025, divulgado no fim do ano passado, prevê investimentos de US$ 1 bilhão em compromissos ambientais para o período, com foco em inovações tecnológicas para descarbonizar as operações, desenvolvimento de combustíveis mais modernos e de novas competências para o futuro.
“Consideramos cenários de transição energética compatíveis com o Acordo de Paris e a Agência Internacional de Energia, alinhamos nossa estratégia para produzir petróleo com baixo custo e baixo carbono”, afirma a empresa.
Em 2020, a Petrobras investiu R$ 28,5 milhões em pesquisa e desenvolvimento no segmento de combustíveis avançados e R$ 21,5 milhões em energia renovável com foco em eólica, solar e bioquerosene de aviação. O investimento em soluções de baixo carbono corresponde a 10% dos investimentos em P&D, segundo a companhia.
Com atuação no Norte e Nordeste, a Eneva tem apostado na geração a gás natural como alternativa energética para as termelétricas a óleo combustível. No início de 2021, a empresa emitiu debêntures que foram caracterizadas como “transition bonds”, emitidos por empresas que possuem atuação em energia fóssil, mas que buscam financiar a jornada para patamares mais sustentáveis.
O título emitido teve como objetivo financiar o projeto Azulão-Jaguatirica, investimento de R$ 1,8 bilhão, que vai produzir gás natural na bacia do Amazonas em Silves (AM) para abastecer a usina termelétrica Jaguatirica II, em Boa Vista (RR), o que permitirá o desligamento da atual usina movida a diesel e abastecer 70% da demanda do Estado.
“Atualmente, o Estado de Roraima é abastecido por energia proveniente de usinas a óleo, caras e muito poluentes. Nossa usina irá substituir parte deles, contribuindo para redução na emissão de CO2, além de baratear o preço da energia”, diz Marcelo Habibe, diretor financeiro da Eneva.
O gás natural vem sendo considerado o combustível ideal para a jornada de descarbonização de países e empresas – embora ainda seja de origem fóssil, ele emite menos gases de efeito estufa do que térmicas a óleo, é mais barato e abundante. Para Habibe, ele traz a segurança energética que as fontes intermitentes, tais como eólica e solar, ainda não oferecem. “Apesar de muitos chamarem de período de transição – que dá a ideia de um momento curto –, nós entendemos que, dada a competitividade do nosso gás, esse período deverá ser longo”, diz o executivo.
Não obstante o entusiasmo de alguns segmentos, ainda é difícil precisar quanto tempo a transição para a economia de baixo carbono levará para ser feita. Países em desenvolvimento como China e Índia, por exemplo, ainda são muito dependentes de energia fóssil e isso deve permanecer por mais algumas décadas.
“É pouco provável que até 2035 o mundo já tenha abolido os combustíveis fósseis, pois países com grandes populações vão continuar demandando um suprimento de energia constante. Mas vemos empresas de petróleo e gás se posicionando como empresas de energia, abertas a investir em outras possibilidades”, diz Maurício Salla, executivo da indústria de energia da Crowe Macro, empresa de consultoria e auditoria.
A mudança de posição dos Estados Unidos no jogo climático também deve ditar o ritmo da transição. A posse do democrata Joe Biden trouxe a tiracolo o retorno dos EUA ao Acordo de Paris e um plano de recuperação da economia que prevê US$ 2 trilhões para financiar as atividades de baixo carbono.
A descarbonização também pode ser feita em nível regional. A Amazônia, muito dependente de sistemas isolados de produção de energia à base de combustíveis fósseis, é alvo de uma proposta enviada ao governo federal pela Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e Consumidores Livres (Abrace).
A entidade sugere a substituição das térmicas a óleo diesel por sistemas híbridos com painéis solares e diesel, a ser custeada com recursos arrecadados pelos programas de eficiência energética – em torno de R$ 500 milhões/ano. Hoje o setor elétrico brasileiro custeia R$ 8 bilhões em diesel por ano para abastecer os 235 sistemas isolados concentrados nas regiões Norte e Nordeste, com carga estimada em 483 MW.
“São térmicas a óleo diesel com baixo grau de eficiência e que emitem anualmente até 3 milhões de toneladas de CO2 por ano, com um custo de combustível que varia entre R$ 1 mil e R$ 2 mil o MWh. Hoje já é possível produzir energia solar a R$ 100 o MWh”, afirma Victor Hugo Iocca, representante da Abrace.
Segundo ele, investimento em sistemas fotovoltaicos poderia, em pouco mais de uma década, extinguir a queima de combustíveis fósseis em sistemas isolados. A proposta foi apresentada em 2020 para o Ministério de Minas Energia (MME) e a ideia da Abrace é fomentar um piloto entre as empresas do setor de geração.
Além da troca de combustíveis fósseis por renováveis, as empresas estão investindo em planos múltiplos para reduzir emissões. Um exemplo é a Movida, do segmento de locação de veículos, que traçou uma estratégia corporativa de clima em três frentes: mitigação, compensação e adaptação.
Na primeira, foi estabelecida uma meta de redução das emissões em 15% até 2025 e 30% até 2030, com foco no uso de energias renováveis nas lojas e pátios, eletrificação da frota e escolha prioritária do etanol para abastecimento de veículos. Para compensar emissões que não podem ser evitadas nas operações, estão previstos projetos de reflorestamento, além de um programa que permite aos clientes compensarem as emissões de suas viagens.
Para a locadora, a eletrificação da frota de veículos não deverá acontecer antes de 2030. Enquanto isso, a empresa incentiva o uso do etanol pelos clientes, já que o combustível emite 73% menos gases de efeito estufa em comparação com a gasolina, segundo a Embrapa.
Para Edmar Lopes, diretor financeiro da Movida, o etanol é ideal para o cenário de transição. “A eletrificação da frota no Brasil passará pelos veículos híbridos. Mudar para veículos 100% elétricos não será tão rápido como nosso imaginário pensa e, até lá, o etanol continuará sendo uma boa alternativa”, diz. Hoje menos de 1% da frota de veículos no Brasil é de elétricos, e na Movida o cenário não é diferente: dos cerca de 118 mil veículos da empresa, 95 são elétricos e operam apenas nas praças do Rio de Janeiro e São Paulo. O custo de locação também é mais alto – a diária de um veículo elétrico na Movida sai por R$ 229, enquanto a média de outras categorias de veículos é R$ 130.
Mas é de olho nesse futuro que novos negócios estão surgindo. A startup Tupinambá Energia, fundada em 2019, aposta em tecnologia e infraestrutura para abastecimento de veículos elétricos e desenvolveu um software que ajuda os donos de carros elétricos a encontrar estações de carga, podendo até reservar as vagas com antecedência.
O aplicativo mostra a geolocalização dos cerca de 500 pontos de recarga existentes no país. A startup desenvolveu ainda uma estação de recarga que pode ser utilizada como veículo de mídia, com telas de 55 polegadas para exibir conteúdo sobre mobilidade elétrica e ser também um espaço publicitário.
Davi Bertoncello, fundador da Tupinambá Energia, acredita que o ponto de eletrificação de veículo será o “novo wi-fi”. “No futuro próximo, o público será atraído para locais que oferecerem essa conveniência”, diz. A startup aposta que o interesse por estações de recarga virá de redes de shopping centers, grandes lojas do varejo, edifícios comerciais e construtoras e incorporadas.
A capital paulista, por exemplo, já tem uma lei que exige que novos prédios tenham postos de recarga para carros elétricos. “Sempre levamos essa provocação ao setor imobiliário: o empreendimento de alto padrão olha para a mobilidade de hoje ou de 2025? Até lá, no mínimo, terão que disponibilizar 20% das vagas para veículos elétricos”, diz Bertoncello.